segunda-feira, 27 de junho de 2016

RELATO DE PARTO DA ANAHY - Domiciliar com transferência - Parto normal após cesárea (VBAC com indução)

Relato de parto da minha querida amiga Simone, que aconteceu aqui em Lavras - MG, na Santa Casa, em Março de 2016.

Partos anteriores

   Escrevo no intuito de colaborar na luta permanente pela humanização do nascimento, fortalecer as mulheres que buscam o parto normal após cesárea, incentivar aquelas que ainda são levadas a crer em mentiras (de que não aguentamos um parto natural) e ampliar a percepção, para demais pessoas na sociedade, da importância da humanização do nascimento. Penso que essa discussão deveria sair da esfera estritamente obstétrica e ganhar espaço, inclusive, na educação de jovens. Quero dizer que sim, somos todas capazes de parir, que parir dói, mas nos fortalece além do que imaginamos!! Este relato é também um desabafo de tudo que ficou guardado em minha alma feminina por tantos anos e que pude parir junto com Anahy no dia 11 de março de 2016.
Nossa primeira filha, Maíra, nasceu dia 14 de dezembro de 2005 em Porto Alegre, RS. Durante a gravidez estava convicta que queria parto normal, li o livro “Parto ativo” sonhando em parir de cócoras, pois me parecia muito natural. Nem sabia o que era “violência obstétrica”. Morava em Manaus e meu marido no interior do Amazonas, distante 4 dias de barco… passamos a gravidez nos vendo uma vez por mês. Fiz a coleta de dados de meu mestrado, na floresta, até o sexto mês de gestação. Em dezembro ele foi comigo ao RS, onde vive minha família, para acompanhar o parto. Entrei no Hospital de Clínicas com 3 cm de dilatação e contrações regulares, fui bombardeada com intervenções desnecessárias: indução imediata com ocitocina, rompimento de bolsa, monitoramento fetal constante, exame de toque a cada hora por médicos diferentes, deitada para o lado esquerdo durante todo TP. Ao final de 12h ela nasceu via vaginal, porém só fui vê-la e amamentá-la quase 9h depois…Lembro como se fosse ontem a carinha dela, quando foi colocada ao meu lado… Abriu os olhos de imediato, me olhando fixamente… Fiquei triste, frágil, chorava sem saber porquê. No momento do expulsivo não sentia bem as contrações e fizeram episiotomia (corte na vagina). Entendi que fui cobaia de uma equipe médica, onde todas mulheres recebem tratamento igual sem considerar a fisiologia de cada uma. Haviam prazos para dilatar, para expulsar o bebê, as intervenções foram realizadas sem meu consentimento, não pude beber água nem ir ao banheiro durante todo TP… Primeiro dia no hospital, quarto coletivo do SUS, tive rachadura na mama. Sangrava…Entrou uma equipe de médicos residentes no quarto, o “professor” se dirigiu a mim, pegou meu mamilo sem sequer dizer bom dia, e virou para os estudantes: “este é um caso típico de rachadura de mamilo”. Eu estava tão cansada, tão frágil, não consegui ter reação alguma. Hoje, eu daria um tapa na cara daquele imbecil. Durante anos não entendi nada.
Nossa segunda filha, Anita, nasceu dia 12 de março de 2010 também em Porto Alegre. Morávamos em Lavras, Minas Gerais. Durante a gravidez tive algumas intercorrências que hoje compreendo terem sido neuroses da obstetra (ameaça de aborto, depressão, etc), que me fizeram ter uma gravidez sedentária. Continuei sonhando com o parto de cócoras, e teria a assistência de minha médica no sul  que conhecia desde minha adolescência. Estava segura. Fui a Porto Alegre novamente para ficar próxima de minha mãe no parto. Porém, no dia 4 de março ela sofreu um AVC e ficou em coma sem leito disponível nem médico para assisti-la no SUS, acomodada na emergência. Enfrentamos o sistema de saúde com liminares na justiça e buscando apoio da mídia para conseguir um leito para ela. Meu telefone não parava de tocar, advogado, amigos dando apoio, oferecendo ajuda, repórteres oportunistas querendo com meu momento atingir a prefeitura….fomos aos jornais, à televisão, valia tudo. Esqueci tudo que eu sabia sobre biologia, acreditando até o último momento que ela iria voltar… O desgaste foi enorme, dia 10 de março o médico que cuidava do caso dela (clínico geral) disse sonoramente “cuide do seu bebê que está para nascer que sua mãe não tem mais volta” eu estava então com 38-39 semanas…. Lembro que gritava, me desesperei naquela emergência de quinta categoria, perdi o controle, e esqueci completamente que estava às vésperas de parir. Ao final minha médica sugeriu uma cesárea porque eu estava muito abalada e tinha medo que algo pior acontecesse à minha mãe e eu ainda estivesse grávida. Não questionei, estava sem controle algum de minha vida naquele momento. Marcamos para o dia 12. Lembro de que a cada aparato que iam colocando em meu corpo (dispositivos para monitorar coração, sonda, soro…) me lembrava a condição de minha mãe no hospital, com os mesmos aparatos, só que ela estava inconsciente. O médico anestesista perguntou se minha mãe fumou durante a vida, respondi que sim. Então ele me disse “a saúde cobra seus pedágios mais cedo ou mais tarde”. Nenhum daqueles médicos tinha noção de quem era aquela mulher que estava em coma.
Anita nasceu às 20h. Mamou nos dois peitos de imediato e foi para o colo do pai. Chorei ao escutar seu chorinho. A visão de minhas pernas sem movimento após a cirurgia foi um terror. Tive hipotermia, minha temperatura foi a 33 graus, tremia tanto que perdi o controle do meu corpo e me cobriram com vários edredons. Senti medo. Fui para o quarto já às 2h da manhã. Às 5h minha prima entrou no quarto e recebi a notícia do falecimento da minha mãe… Eu queria ir a cremação, me despedir… mas com uma cesárea não poderia sair do hospital antes de 48h. Eram então duas dores, a perda de minha melhor amiga e os cortes da cesárea, que levaram 3 meses para cicatrizar. Ainda no quarto do hospital vi na televisão a morte de minha anunciada como “a Senhora que estava aguardando um leito… mais um caso que o SUS não resolveu”. Na família todos estavam em choque. Ela era uma mulher muito forte, unificadora, apaziguadora e necessária a todos.
Não tínhamos intenção de ter mais filhos, mas em 2015 mudamos de idéia simplesmente porque adoramos crianças!! Na primeira tentativa tive um aborto espontâneo, precisei curetagem. Foi sofrido, mas no mês seguinte engravidei outra vez!

Gestação

Decidi que este parto seria o que eu desejei sempre, e que seria em casa com a presença de minhas duas filhas, futuras mulheres que poderiam vivenciar como podemos trazer as crianças ao mundo de forma respeitosa. Passei o primeiro trimestre no Chile, sozinha, realizando um estágio do meu doutorado, que curso em Lavras. Ao retornar para casa engrenei uma gravidez extremamente ativa: ioga, meditação, pilates, radicalizei a alimentação saudável, leituras e mais leituras sobre tudo a respeito de parto e preparo para o parto. Procurei exorcizar alguns medos: o de que eu era uma gestante de risco pela minha idade (37 anos) e de ruptura uterina pela cesárea anterior.
Estudando entendi porque passei por tudo que passei nos dois partos anteriores. Infelizmente a realidade é que não basta para uma mulher querer ter um parto natural, ela precisa estudar, se informar, se preparar muito, muito, muito…...e principalmente…contar com uma equipe humanizada! Mas humanizada de verdade. Soubemos que seria outra menina, que alegria! E já começamos a chamar ela de Anahy, nome de origem guaraní. Fiz contato com uma equipe de Divinópolis, Rebeca (doula), Fabiana (enfermeira obstétrica) e Larissa (obstetriz) e elas aceitaram me assistir. Durante o pré-natal fazia consultas com a equipe domiciliar aqui na cidade, junto a uma amiga que estava com idade gestacional próxima a minha. Foi essa amiga que me colocou em contato com a equipe e serei eternamente grata a ela por isso. Formamos um grupo de gestantes via whatsapp e iniciava um grupo de empoderamento de mulheres que buscam parir com dignidade. Meu médico obstetra aceitou e apoiou minha decisão de parir em casa e me assistiria no hospital se fosse necessário, colocando-se à disposição como “back-up” da equipe domiciliar. E o sonho foi semeado! Passei os nove meses idealizando este parto (embora dissesse a mim mesma que não faria isso e deixaria tudo fluir do jeito que viesse).
Sempre gostei muito de estar grávida. Sempre me senti disposta e ativa. E esta foi a gestação mais tranquila de todas, pois estava no melhor dos mundos, com meu marido junto, as meninas independentes, uma equipe humanizada auxiliando, muitos medos exorcizados, tranquila e ativa durante todo tempo. Ao final da gravidez tive uma forte candidíase que me fez tomar uma atitude radical: eliminar todo açúcar da minha alimentação. Após alguns dias me sentia muito melhor, curada, e com uma disposição tremenda. Intensifiquei os exercícios de ioga e meditação em casa, e trabalhava muito o mantra “A” que minha professora recomendou muito para o momento do expulsivo. Além disso, exercitei o períneo com o aparelho epi-no para ter melhor percepção corporal. Tanto o epi-no quanto os mantras e as contrações do períneo considero que foram fundamentais para o sucesso do parto.
Ao longo da gestação conversamos muito com as nossas filhas sobre o parto, a importância de um nascimento respeitoso e procedimentos  baseados em evidência, assistimos vídeos diversos de partos. Elas estavam muito ansiosas por acompanhar o nascimento da irmã…E eu sonhando em viver isso junto as minhas pequenas futuras mulheres.
Completaria 40 semanas dia 10 de março. No entanto, após as leituras me preparei para que pudesse acontecer até as 42 e procurei nas últimas semanas desligar de tudo que tivesse relação com o nascimento para relaxar. Não queria ler mais nada a respeito de parto, não queria mais ver vídeo algum…Desde a 37ª semana tive contrações fortes (pródromos) durante alguns períodos da noite, e pensava que estava mesmo perto de chegar o momento!

O parto

No dia 9 de março fui à tardinha buscar minhas filhas na escola andando, para ajudar a “chamar o parto”…Escutei relatos de mulheres que trabalharam no “pesado” até o último dia de gravidez e que o trabalho de parto engrenou. Mas estava certa de que iria demorar ainda mais uma semana…
Lá pelas 21h comecei a sentir contrações fortes, liguei para Rebeca (doula) que sugeriu monitorar. Baixei um aplicativo no meu celular e fiquei monitorando. Estava de 5/5 minutos. Por volta da meia noite a equipe avisou que viria para Lavras. As contrações estavam fortes e não pude dormir. Passei um tempo no chuveiro para aliviar as dores. Depois, meu marido organizou um esquema na rede que me deixou confortável. Fiquei sentada na rede, debruçada em uma pilha de travesseiros, e com a bola de pilates embaixo. Sentia vontade de vocalizar e assim passei a madrugada. Nem percebi o tempo…. às 5h a equipe domiciliar estava aqui em casa. Fiquei muito emocionada quando elas chegaram pois então caiu a ficha de que Anahy estava mais perto! Fiquei feliz! Rebeca já iniciou as massagens a cada contração e fui pro chuveiro outra vez, vocalizava a cada contração. Minhas filhas acordaram logo em seguida e estavam felizes também. Maíra disse que me escutou gemer e que ficou preocupada, mas quando viu a alegria de todos ficou tranquila de que o momento estava chegando.
No meio da manhã caminhei pelo quintal. Sentia vontade de me agachar e parecia que era a única posição que aliviava as dores. Já não sentia vontade de gritar, pois tinha a impressão de que gritando minhas energias iam junto. Então passei a praticar respiração profunda, soltando o ar a cada contração. Ao final da manhã entrei na piscina e o alívio foi imediato.
Anita, minha filha mais nova, quis entrar na piscina comigo e ficou brincando, fazia massagem em meu rosto... Simão, meu marido, fez do-in nas minhas mãos, que aliviava muito. Almocei, bebi água. O movimento na casa era grande, ele estava presente todo momento, mas também precisava cuidar das crianças. Ele fez também um chá de pimenta, cacau, gengibre e mel, que pedi para me dar mais ânimo. Senti sono, Fabi sugeriu que descansasse, mas não tolerava ficar deitada. Queria agachar nas contrações.
À tarde descansei um pouco na rede. Pedi que as crianças não fossem a escola, pois tinha medo de que nascesse Anahy e elas não estivessem presentes. Elas ficaram no quarto brincando no mundo delas, vindo de vez em quando me ver. No entanto, chegando ao final da tarde elas começaram frequentemente perguntar quando iria nascer.
   Isso foi me deixando angustiada, mas assim mesmo não me ocorreu de pedir a minha amiga que estava à disposição levá-las de casa por um tempo. Acreditava que meu TP seria rápido. Doce ilusão!
Perto do final da tarde Rebeca me convidou pra dançar. Escolhemos algumas músicas e dançamos. No entanto, por algum motivo eu ainda estava muito racional e comecei a me perguntar em que momento eu iria desprender da realidade. Pedi para beber um amarula, um licor com cacau muito alcóolico, para ver se eu desligava um pouco, mas só me deu mais sono… Fabi sugeriu fazer toque, mas eu tinha receio de ficar ansiosa e preferi não fazer. Rebeca aplicou a técnica do rebozo, que consiste em usar um pano bem largo no quadril e sacudir. A sensação era boa. Em seguida Simão me fez uma massagem tão intensa que senti nela todo seu amor por mim, por nós, chorei muito.
Ao final do dia o tampão mucoso começou a sair. Eu estava até essa hora tensa, pois nada acontecia. Quando ele desceu em maior quantidade chorei de alegria! De fato ela estava por nascer! Às 19h30 Fabi fez um toque, e eu disse que não queria saber minha dilatação. No entanto, senti que não estava muito avançada pelas caras de todos (depois soube que estava com 4 cm apenas). Nessa hora fiquei tensa, com medo. Já me sentia muito cansada, mas não conseguia deitar. Sempre que deitava vinha à minha mente o parto da Maíra, em que fiquei deitada 12h sem poder me mexer…
Tinha passado o dia me movimentando e agachando a cada bendita contração! Não deitei nem descansei de verdade em momento algum…Minhas filhas foram dormir um pouco frustradas pela demora, e isso estava me incomodando (só percebi que estava incomodada depois do parto, relembrando). E mais uma noite seguiu, fiquei pouco na piscina, pois percebemos o quanto minhas contrações haviam espaçado após a água. Era como se meu trabalho de parto tivesse estacionado, As contrações ficaram muito espaçadas, a cada 10 minutos, e eu dormia entre elas. Durante a noite fiquei no ambiente que havia preparado, com uma luz azul que acalmava e música suave ao fundo.
Quando já eram 1h da manhã do dia 11 Fabi sugeriu fazer outro toque, desta vez quis saber, estava com 8 cm. Pensei, puxa tudo isso e ainda estou com 8cm?? Quando lembro desse meu pensamento morro de arrependimento, pois estava tão perto… A bolsa estava com uma rotura alta, iniciou perda de líquido bem devagar e rajadas de sangue. Fabi sugeriu terminar de romper, aceitei. Passei a madrugada um pouco deitada. Era tão difícil deitar…hoje me pergunto como consegui parir Maíra deitada!!
Às 5h outro toque, ainda os mesmos 8 cm e havia se formado um edema no meu colo (como um inchaço, que não permite ele dilatar mais). Soube depois que com o colo assim, no hospital seria cesárea na certa. Então Rebeca e Fabi me colocaram na posição de Gaskin, para aliviar a pressão sobre o colo. Era dolorido demais, pois deveria ficar com o quadril elevado bem no momento da contração, com elas aplicando uma massagem que era uma tortura, quase não suportava. Pedi para parar com aquilo, elas sugeriram que eu ficasse realmente deitada, pois precisava aliviar a pressão sobre o colo. Fiquei então, pela primeira vez durante todo TP, deitada pro lado esquerdo. Simão ficou massageando meus pés com do-in durante 3h ininterruptas!! Dormi.
Descansei até as 8h, outro toque foi feito, estava com 8/9 cm e colo sem edema, 90% apagado. Disse que eu estava muito cansada, queria uma anestesia, uma cesariana, qualquer coisa para acabar com aquilo tudo!!!! Não aguentaria mais nada, queria meu bebê em meus braços… Desesperei de verdade… Às 8h30 foi comunicada a transferência ao médico, que esperaria no hospital. Falei para as meninas que iria para o hospital, Maíra chorou…me penalizo muito sempre que lembro disso, ficou guardado na memória…Ficamos aguardando até 10h, pois o médico tinha outro compromisso e ainda não estava lá. Saímos para o hospital de carro, que fica a uns 5 minutos de casa. Fui no caminho me sentindo a mulher mais derrotada do mundo….tanto preparo, tanta dedicação, tantas horas em casa para acabar caindo no hospital e ainda fazer uma cesariana! Me senti o lixo, incapaz, impotente, ridícula, inferior…..
No hospital ainda tivemos que fazer ficha e esperar para subir até a suíte da maternidade. Durante as contrações ficava abraçada na Rebeca, e esse apoio foi fundamental. Me sentia segura, acarinhada, consolada. Estava totalmente entregue a tudo, entregue mesmo, não me importava mais nada que fosse acontecer. Tive medo de morrer. Esqueci de tudo que planejei, esqueci das músicas que queria no meu parto, esqueci, esqueci….o cansaço me venceu.
Cheguei no hospital falando pro médico que queria uma analgesia ou uma cesárea, qualquer coisa que acabasse com aquilo tudo, estava cansada demais. Ele me fez o toque e disse que eu estava com 9 cm, e que não valia a pena fazer uma cesárea, já que faltava tão pouco. Sugeriu que induzisse com ocitocina bem de leve, para fazer com que minhas contrações entrassem num ritmo mais rápido outra vez, já que havia horas que elas haviam estacionado. Fiquei com medo pois tinha lido que com cesárea anterior não deve haver indução. Rebeca me disse que neste caso nem seria uma indução, seria uma condução pois já estava muito perto. A ocitocina nesta situação somente iria fazer com que minhas contrações ficassem mais ritmadas, de minuto a minuto. Aceitei, mas acreditando que iria ser cesárea pois pensava que não seria capaz de suportar uma só contração. Estava certa de que não suportaria mais nada. Ficaram no quarto comigo meu marido, a equipe domiciliar e o médico.
Às 10h30 foi iniciada a indução com ocitocina, o médico colocou glicose também e me deu uma reavivada, eu estava um caco humano. Quando as contrações voltaram de minuto a minuto, não tinha tempo nem de pensar. Fui pro chuveiro e lá fiquei, agachada e respirando profundamente a cada contração. Já não pedia Rebeca por perto, nem Simão, nem ninguém. Não gostei da banqueta, sentia desconfortável, queria só ficar de cócoras mesmo. E as contrações foram ficando mais fortes, e meu intestino começou a esvaziar. A partir desse momento parece que tudo a minha volta perdeu importância….havia entrado na partolândia! Em um dado momento resolvi sair do chuveiro, foi meio instintivo, só sei que sentí “chega, preciso sair daqui”. Então me lembro de Rebeca me perguntando “Onde você quer dar a luz?”. Essa pergunta ativou meu cérebro “Dar a luz? Então eu vou parir por mim mesma?” Até então eu não estava acreditando que iria parir sem intervenção pesada.
Olhei de relance pelo quarto todo, vi um canto bem na frente da janela, no chão, apontei pra ele com o dedo, sem falar, sem sair daquele universo paralelo em que me encontrava. Fiquei apoiada num banquinho. Não estava legal, então pedi que Simão me sustentasse, pois queria ficar de cócoras. E começaram os puxos. A dor era muito intensa, e a cada contração vocalizava o mantra “A”, relaxava e soltava o períneo como havia treinado durante a gestação. Senti o círculo de fogo, uma ardência insuportável!!!! Mas estava acontecendo!!!! Enfim parir com consciência era parte da minha vida!! Após o círculo, a cada contração aquela vontade louca de fazer força. Me contive fazendo força de leve para não lacerar o períneo.  Eu pensava durante a gestação que não saberia identificar o momento de fazer força, pois meu primeiro parto normal não tive essa percepção pelo tipo de parto que tive (deitada). No entanto, é tão instintivo que não tem como não saber!
O médico perguntou se eu queria sentir ela, coloquei a mão e senti a cabecinha dela saindo, que alegria! Que vontade de gritar! Então continuei relaxando o períneo e fazendo a força suavemente. Quando saiu a cabeça, o médico desfez três voltas do cordão umbilical no pescocinho dela! Só soube depois, pois na hora não tive nem vontade de perguntar, precisava me concentrar. Foi num deslize e ela saiu, veio imediatamente para os meus braços! Fiquei atônita, parecia um sonho, eu tinha conseguido parir ela! De cócoras, como sonhei.



E ela estava ali nos meus braços, linda! Outra indiazinha, olhinho puxado, cabeluda! Muito cabeluda! Igualzinha às irmãs! Ficou em silêncio, e depois de uns minutos espirrou, chorou! Coloquei ela em contato com minha pele. Ficamos com ela. Simão chorava também… e cortou o cordão umbilical após parar de pulsar!
   Depois de uma hora mais ou menos, ele foi buscar nossas filhas mais velhas, por sorte conseguiram convencer na portaria a deixá-las entrar, e assim puderam conhecer a nova irmã logo na primeira hora.



  Eu estava no céu. Era tanta adrenalina, queria falar, queria sair porta afora contando a todos, a energia que eu tinha era incrível, parecia que tinha usado um alucinógeno! Não parecia que havia ficado 38h em trabalho de parto! Estava renovada, forte, capaz de qualquer coisa!
   Eu, com uma cesárea anterior, com 37 anos…me senti com muito poder! Tive uma laceração mínima que nem necessitou ponto! Períneo íntegro! Pensei que se meu primeiro parto tivesse sido assim, teria tido uma penca de filhos, um atrás do outro. 
   Uns 15 dias depois do parto, no entanto, bateu o arrependimento de ter ido ao hospital, quando escutei minhas filhas se queixarem de não terem visto Anahy nascer… Faltava tão pouco….Senti uma dor de não tê-las ao meu lado no parto, pois era um dos principais motivos de escolher o parto domiciliar. Passei dias chorando por isso, até compreender que naquele momento fiz o que meu instinto me pediu. Estava cansada, morta, sem forças. 
   Fazendo uma reflexão profunda sobre tudo que aconteceu, entendi que naquele momento do trabalho de parto eu ainda era aquela mulher-polvo, que queria abraçar o mundo, e nem no seu próprio parto abriu mão disso (em trabalho de parto, pensando nas crianças, sem desligar de nada, com a casa cheia)…. Aprendi muito de mim com essa experiência, me conheci demais, conheci meus limites, superei muitos medos, e parí todos eles junto com Anahy…E agora não sou mais a mesma mulher.
   Serei eternamente grata à Rebeca, Fabi e Larissa por todo apoio que recebi, o respeito e carinho que tiveram comigo. Sem vocês, minhas amadas, eu não chegaria nem perto de viver o que vivi! Serão minhas irmãs do peito e de alma para o resto da minha vida! Amo vocês! Grata ao Lucas, por negligenciar meu pedido desesperado de analgesia! Esse médico apoiou minha decisão e teve paciência de sentar e esperar meu bebê nascer, enquanto fora do quarto seus colegas diziam “eu já teria feito uma episio, não tenho paciência para esperar tanto tempo, porque está parindo no quarto?”. 
   E o mais sublime dos apoios: Simão….meu companheiro fiel, firme, terno, de uma sensibilidade rara, homem lúcido e extremamente amoroso. Nosso laço foi fortalecido ainda mais, com mais esta experiência… Teria mais meia dúzia de filhos com este homem, que me apóia em todos momentos e decisões. A companhia dele foi fundamental, parceiro até debaixo d’água.
  Às vezes quando conto a história de nascimento da Anahy escuto pessoas, mulheres em geral, dizerem “nossa, que guerreira que você foi”, “que coragem”, e coisas do tipo…Como a sociedade conseguiu impingir nas mulheres um medo de algo que elas são as únicas capazes? Digo sonoramente que todas somos guerreiras. A diferença é a assistência que as mulheres podem contar ao seu lado no momento do parto. Se toda mulher tivesse uma equipe humanizada com pessoas competentes, sensíveis, que trabalhem baseadas em evidências científicas, suportaria muito mais do que pensa ser capaz.
   Realmente a humanidade esqueceu sua condição mamífera, o quanto a evolução nos deixou prontas para passar por este processo ao longo de milhares de anos…. Fiquei devaneando esta questão, pensando nas milhares de mulheres da espécie H. Sapiens que passaram pelo parto, desde os tempos remotos em que ainda éramos caçadores e coletores, tentando imaginar o universo físico e espiritual de cada uma, em cada geração... Viagens de bióloga…
   O parto é um portal, de fato uma experiencia única na sexualidade de uma mulher, e que não pode ser vivido plenamente sem a assistência humanizada. Que a luz do conhecimento se faça para todas as mulheres e homens. Meu parto se deu, e mesmo não tendo sido exatamente como eu o desejei, foi lindo, foi o meu parto. Aprendi e renasci. E nada de lamentos, pois a luta está só começando…

terça-feira, 24 de maio de 2016

Relato de nascimento do Dante - VBAC Domiliciar



O parto do Dante começou lá em 2010 com o nascimento da irmã Aurora. Contei AQUI sobre o nascimento dela, da nossa busca por um parto humanizado e sobre toda violência obstétrica que sofremos. Foram 5 longos anos gestando mágoas e angústias, chorando escondido quando o aniversário dela se aproximava e eu relembrava tudo o que nos tinha acontecido.

Engravidei pela segunda vez Julho de 2015, naquele turbilhão de zika vírus e microcefalia que deixou todo mundo em pânico. Foi uma gravidez muito tranquila apesar do alarde por conta do vírus, e desde o momento em que eu peguei meu positivo no laboratório entrei em contato com a minha doula Rebeca Charchar pra saber o que faríamos. No nascimento da Aurora fiquei os 9 meses em contato com Rebeca, mas na hora do parto não quis chama-la e me arrependi amargamente. Dessa vez eu estava preparada e já fui logo acionando ela. Eu e o Luciano havíamos decido lá no nascimento de Aurora que, se tivesse um outro bebê, ele nasceria em casa. Depois do desastre que foi o parto de Aurora, nunca mais cogitamos um parto hospitalar. Dessa vez eu fiz uma poupança e guardei o dinheiro que recebia da minha bolsa de iniciação científica da graduação que ficou na "poupança parto". Quem recebe bolsa sabe que não é muito, mas fui juntando durante anos pra ter um valor bacana pro parto, caso eu engravidasse de novo.

Rebeca me falou que estava trabalhando com uma equipe legal e nova em Divinópolis, cidade vizinha a minha, e eu topei conhecer. Uma amiga muito querida engravidou na mesma época que eu, então consultávamos juntas e rachavamos o valor do deslocamento da equipe até Lavras, que é onde moramos. Fiz pré-natal com um médico que está se humanizando aqui na minha cidade e com a equipe que atenderia meu parto domiciliar. Aqui foi a primeira diferença que eu notei: as consultas com a equipe do PD (parto domiciliar) eram demoradas e tomavam a tarde inteira; elas conversavam não só comigo, mas com o Lu e com Aurora, tiravam dúvidas, conversavam sobre os meus medos, sobre o que eu queria pra mim e pro meu bebê. Era o tipo de consulta que eu gostaria de ter tido lá em 2010 quando tive Aurora e que a gente não encontra num pré-natal tradicional. Aurora media minha barriga junto com a Fabi (enfermeira obstetra, mas que eu vou chamar de parteira pq não consigo chamar de outro jeito), ouvia os batimentos do bebê, media minha pressão, enfim, ela participava de todo o processo da consulta e também tirava as dúvidas dela. Foi um pré-natal muito gostoso. 

Resolvemos não saber o sexo do bebê e fazer o mínimo possível de ultrassons. Fizemos apenas 4 e o pré-natal foi totalmente não-invasivo, o oposto do pré-natal da primeira gravidez.

Conversei muito com a minha equipe sobre protocolos e procedimentos, pois conversando com amigas, minha mãe e minha avó, percebi um padrão sobre a bolsa rota (quem teve uma vez, em geral tem na segunda, terceira e etc), que foi o motivo que me levou pra cesárea na primeira gravidez, e ficou combinado que, caso a bolsa rompesse sem trabalho de parto, esperaríamos o que fosse necessário. Me lembrei da Alessandra, uma querida amiga minha que teve um VBAC depois de 150h de bolsa rota. Me lembrei das aulas de embriologia da graduação, onde a gente aprende que a bolsa serve pra proteger contra choques mecânicos e infecção. Procurei as evidências científicas atuais sobre bolsa rota e o que fazer em termos de procedimentos e etc. E tive me mente os relatos de pessoas cuja bolsa rompei com 20 semanas de gestação e que levaram a gravidez até o final e tiveram bebês saudáveis. Superei completamente meu medo de acontecer novamente uma bolsa rota através de informação e relatos. Fiz terapia e yoga antes e depois do parto pra me ajudar a trabalhar medos também. Meu único medo nessa gravidez foi acabar numa segunda cesárea desnecessária.

No dia que eu completei 40 semanas de gravidez, já estava de saco cheio de estar pesada, grande e sem mobilidade. Fim de gravidez é um porre, e só quem chegou a 40 semanas sem nenhum sinal de trabalho de parto sabe o sentimento de frustração que dá. No final de semana que completei as benditas 40 semanas, decidi dar uma desligada e fui num restaurante com amigos e no dia seguinte fui na casa de uma outra amiga almoçar e passar a tarde. De madrugada eu acordei molhada, fui no banheiro e troquei de pijama. Ainda pensei "porra Aretha, tu com essa idade e se mijando? Ainda bem que o Luciano tá dormindo" e voltei pra cama. O processo aconteceu mais umas 3 vezes até eu me tocar de que era a bolsa que havia rompido. Voltei a dormir e de manhã contei pro Lu, que abriu um puta sorriso. Eu já estava com contrações esquizofrênicas que nunca engrenavam desde as 37 semanas, e foi um alívio a bolsa estourar. Nesse dia eu tinha consulta com meu obstetra, que ia viajar no feriado de 21 de Abril e ía me deixar com uma GO de backup (o que tinha me causado muito estress na semana anterior, em que eu cogitei até ir pro RJ pra parir, mas como tava sem dinheiro decidimos manter o plano). Fui lá e não falei da bolsa, pq eu sabia que se falasse ele iria contar pra GO de backup e ela ía pressionar pra ir na maternidade. Impressionante como foi só pisar no consultório médico que minhas contrações pararam totalmente. Meu corpo rejeita 100% o ambiente hospitalar. Depois da consulta entrei em contato com a minha equipe e deixei elas de sobreaviso. Elas perguntaram se queriam que eu fosse, e eu disse que não e que ligaria quando as contrações ganhassem rítimo.


De noite eu e o Lu arrumamos a bolsa da maternidade (elas pedem pra deixar arrumado em caso de precisar transferir pro hospital), separei a roupinha que minha mãe havia comprado pro nascimento e fomos dormir. Dessa vez, diferente da primeira gravidez, eu menti descaradamente a minha data provável pra evitar parente ligando e pressionando, e também não contei sobre os planos de parto domiciliar. Eu tinha medo de dar errado de novo e de ter toda aquela pressão das pessoas em cima da gente. Querendo ou não, no final das contas eu acho que muita gente sempre torce pra dar errado só pra dizer o sonoro "eu avisei", então pra evitar a fadiga não contamos, e foi a melhor decisão que tomamos. 

Acordei de madrugada com contrações dolorosas e de 5 em 5min. Às 5:30 da manhã, com 24h de bolsa rota, liguei pra equipe vir pq tava doendo muito e eu achei que tinha engrenado. Elas chegaram às 11h, e assim que amanheceu o dia as contrações ficaram completamente sem rítimo. Elas me examinaram e ficou decidido que elas ficariam aqui em Lavras pra me monitorar por causa da bolsa. A cada 6h lá vinha a Fabi ou a Larissa (obstetriz) com o sonar ouvir o coração do bebê, medir minha pressão e monitorar a temperatura (infecção geralmente causa febre). Era irritante esse monitoramento, mas foi legal receber esse cuidado, conversar e tê-las em casa. Lu fez um yakssoba e jantamos todos juntos. De madrugada voltei a sentir contrações regulares e fui pro chuveiro sozinha. Chorei muito nessa hora, achando que não conseguiria, que não iria dar certo. Rebeca e Fabi ouviram e foram lá conversar comigo. Saí do banho e tomei uma taça de vinho (pode me julgar, mas entre tomar um vinho suave a 7% e uma anestesia cavalar cheia de coisa e depois uma morfina no pós-operatório, optei pelo vinho), conversei com as meninas e relaxei. Tentei dormir de novo, pois já era o terceiro dia dormindo picado por contra das contrações. Fiquei puta com Fabi porque ela vinha olhar as contrações e me dizia pra ficar calma e tentar levar a vida normalmente pq, apesar da dor, ainda não era o trabalho de parto, e sim pródromos (contrações de treino). Eu quis matá-la nessa hora e pensava: "jesus, se isso é o treino, imagina quando engrenar?".



Amanheceu e de novo tudo ficou sem ritimo. Dessa vez as meninas resolveram ir pra um hotel que fica perto da minha casa pra nos dar privacidade, e voltariam pra monitorar a cada 6h. Rebeca me sugeriu fazer uma acupuntura pra ajudar e engrenar. Consegui uma consulta de última hora e dormi na sessão e depois dela, o que me ajudou a recarregar um pouco as baterias e melhorar meu ânimo. Ha essa altura eu tava com medo de ser vencida pelo cansaço. Entramos em contato com uma amiga da Rebeca que trabalha com homeopatia, e ela me sugeriu um remédio e algumas visualizações pra ajudar a engrenar o parto. Ligamos em todas as farmácias homeopáticas e conseguimos uma que fizesse o remédio pro mesmo dia, pois era véspera de feriado e tudo ía fechar. 

Às 17h lá fomos eu e Rebeca buscar o remédio e já começei a tomar assim que peguei. Fomos caminhar na universidade (é o único lugar que dá pra andar aqui em Lavras) e lá tiramos fotos, conversamos e encontrei minha amiga professora de yoga, que me deu um abraço ótimo e mandou muitas boas energias. 

Voltei pra casa com contrações a cada 10min. A Fabi e a Larissa vieram me monitorar de novo. Jantamos e fomos tentar dormir. Foi só todo mundo sair que o trem começou a pegar fogo! 1:30 da madrugada e eu liguei pra Rebeca pedindo ÇOCORRO MEL DELS MIM AJUDA que tava doendo PRA CARALHO. Não quis acordar o Lu pq queria que ele descansasse pra cuidar da Aurora no dia seguinte. Ela chegou aqui e eu tava estatelada no chão da sala, chorando de dor e a cada contração me desesperava. Aquelas contrações eram muito diferentes das de pródromos, e eu queria sair correndo de mim mesma pra escapar da dor. Rebeca me acalmou e me ensinou a respirar entre as contrações. Me lembrei das mentalizações e respirações da yôga, e lembrei também de um vídeo que minha professora tinha me passado que ensinava algumas vocalizações pra ajudar a dilatar. Fui vocalizando o "ahhhhhhhh" do início ao fim do parto. Rebeca sentou no sofá e eu no chão, e entre as contrações nós duas cochilávamos e ela me fazia cafuné. 




De manhã, ainda com raiva da Fabi por me dizer que não era trabalho de parto ainda (como se a culpa fosse dela, coitada hahahaha), pedi pra Larissa vir monitorar. Ela monitorou às 6h. Lembro só de ter visto o dia clarear da janela da minha sala e do Lu e Aurora acordarem e fazerem o café. Depois disso o que eu vou relatar ficou meio borrado, pq eu fiquei LOUCONA. 

Às 9h e pouca a Fabi veio monitorar de novo. Segundo ela, assim que ela entrou na porta me ouviu dando uns urros e falou "agora sim começou o trabalho de parto". Eu só lembro delas colocando a touquinha de parto, pois ficou bem marcado pra mim como "agora o parto começou e esse trem vai nascer". Eu tomei a homeopatia diluída na água das 17h do dia 20/4 até a hora em que o bebê nasceu. O Lu pediu pra minha amiga colega de barriga (e filha dela já havia nascido) levar Aurora pra casa dela pra brincar, pois eu já tava gritando loucamentchy. Apesar de ter preparado Aurora os nove meses da gravidez pra assistir o parto (vimos MUITOS vídeos de parto juntas, principalmente os com gritos. Mostrei e expliquei pra ela sobre bolsa, placenta, sangue e tudo o mais), o pouco de racionalidade que me restava dizia que era muito pra uma criança de 5 anos ficar sabe lá deus quantas horas em casa ouvindo a mãe gritar (pq eu não gritei pouco não minha gente!). Lá foi ela. 

Me desliguei totalmente depois que Aurora foi pra casa das amigas. Não lembro do dia passar, só lembro de flashs. Uns dias antes do trabalho de parto, minha mãe me falou pra "desligar de tudo e não pensar" quando a contração viesse, e foi isso que eu fiz. A contração vinha e eu não pensava na dor, não pensava no bebê, não pensava em nada, só em respirar. Me concentrei 100% em respirar. Fui pro chuveiro, pra bola, pro quarto. Deitei e tentei dormir entre as contrações. Lembro de me darem comida na boca e de alguém aparecer com um canudinho pra eu tomar água e suco. Lembro de abraçar Lu e Rebeca. Minha contagem de horas morreu, pq eu esqueci o relógio completamente. Só lembro de me darem almoço e comida ao longo do dia. Depois o Lu me contou que eu, além de berrar igual uma louca, chamei muito o bebê e disse que queria conhecê-lo. Me contou também que eu chorei e em alguns momentos me confundi, achando que quem iria nascer era Aurora. Desse momento a única coisa que eu me lembro foi de pedir desculpas a ela por não ter conseguido protege-la e dar a ela o nascimento que ela merecia.

Eu tinha pedido pra não ter exame de toque e pra só enxerem a banheira no final, então quando ouvi o barulho da maquina enchendo a banheira sabia que o negócio tava acabando. Fabi colocou as pétalas de rosa (tiveram que ser artificiais e esterelizadas por conta do risco de infecção) e trouxeram Aurora de volta pra ver o irmão nascer.
Lembro da Fabi me falar que se eu quizesse, podia fazer força. Fiz força um tempão e nada. Elas até colocaram o espelho pra ver se conseguiam ver a cabeça do bebê, mas não rolou. Elas acharam que eu estava no expulsivo, mas eu não senti puxos nem nada. Saí da banheira PUTA PRA CARALHO pensando "sáporra não acaba". Pedi o primeiro toque do trabalho de parto e estava com 8 cm de dilatação (vai até 10 cm). Perguntei que horas eram (eram 17h e poucas) e falei pro Lu ligar pra minha mãe vir que ainda dava tempo dela chegar aqui no dia seguinte (ela não sabia q eu estava em trabalho de parto).




Nessa altura eu não aguentava mais. Lembro de olhar o celular do Lu e as contrações estarem a cada 1min, durando uns 40s. Fui pro chuveiro de novo e chorei. Já era de noite e tomei um banho pelando pq eu curto água quente. Sentei na banqueta embaixo do chuveiro e queria morrer. Lembro de conversar com a Rebeca e dela me falar pra perdoar todas as mulheres que optam pela cesárea, que agora eu entendia a dor. Falei pra ela que eu já tinha calçado as chinelas da humildade há 5 anos atrás, e que desde então eu tinha decidido não julgar a maternidade das outras. 



Pedi pelo amor de deus pra aquilo acabar. Não aguentava mais. Eu tinha combinado com todo mundo que eles só me levariam pro hospital se eu ou o bebê estivessem em risco, mesmo que eu pedisse por analgesia. Rebeca novamente me ajudou com sua sabedoria e me falou que eu já tinha superado o parto de Aurora, que já tinham passado as 36h de bolsa rota do nascimento dela, e que eu estava construindo uma ponte para as mulheres com aquele parto. Que meu parto era o primeiro em 26 anos na minha família e na do Lu, que ía ser o primeiro parto domiciliar planejado de Lavras e que serviria de inspiração pra outras pessoas. Lembro de falar pra ela que eu não queria ser inspiração pra ninguém, que eu só queria que a roda do carma girasse em meu favor porque eu merecia aquele parto. Eu conquistei cada momento daquele parto, e eu merecia que o universo dessa vez me deixasse ser feliz. 

Lembro do Lu me apoiar deitada na cama e cantar a "nossa música" no meu ouvido pra eu me acalmar, e foi muito gostoso poder viver esse momento com ele. Foi um momento muito feliz do meu trabalho de parto.

Tomei mais um pouco de vinho nessa hora, pois tava doendo muito e eu precisava de algo que me ajudasse a relaxar. Rebeca sugeriu fazer um toque e descolar as membranas, caso houvesse algum restinho ainda. Estava com 9 cm e a Fabi descolou o restante das membranas e falou que o colo tava quase completamente dilatado, e que se eu quizesse podia empurrar que o colo ía ceder e o bebê ía nascer. Não senti nenhum puxo. Nessa hora conversei grosso com o bebê e chamei ele na xinxa dizendo que ele precisava nascer, que nós queríamos conhecê-lo e estávamos prontos pra recebê-lo. Eu sabia o que fazer e como expulsar o bebê porque tinha treinado usando um aparelho que chama Epi-no, então agachei e exatamente no mesmo lugar e na mesma posição que eu usava o aparelho, resolvi quemeu filho ía nascer. Segurei no berço que tava do lado da minha cama, dei a mão pro Luciano e começei a fazer força. Fiz força e segurei, pro bebê não voltar a subir, e fui fazendo isso em todas as contrações. A Fabi colocou uma toalha e um espelho, e na hora que eu vi o cabelinho dele finalmente eu acreditei que meu bebê ía nascer de parto, na minha casa, e que tudo tinha dado certo. Foram 4 contrações e ele nasceu. Não deu tempo de Fabi colocar as luvas e de Luciano e Aurora trocarem de lugar pra ver o bebê nascer de outro ângulo. Fabi pegou o bebê e tirou a meia laçada que tinha de cordão,e em menos de 1 segundo eu já tinha puxado a criança da mão dela e tava lá conferindo os documentos pra ver se era menino ou menina. :) 

Aurora acompanhou parte do trabalho de parto, o nascimento do bebê e da placenta e os três pontinhos na laceração que eu tive (ela quis ver dar os pontos, desconfio que vá seguir alguma profissão na área de saúde :). Deixei ela ver porque ela tava muito tranquila e confortável com a situação, e na segunda-feira foi lá contar pros amiguinhos da escola como tinha sido legal ver o irmãozinho nascer, a placenta sair. 



Da placenta foi feito um desenho e ela está no meu congelador, aguardando ser plantada. 

Alguns dias depois, minha filha me perguntou aonde a placenta dela tinha sido plantada. Me deu um nó no estômago e falei pra ela que no hospital onde ela tinha nascido, o médico não guardou a placenta e eu não tinha podido vê-la, ela tinha sido jogada fora. Ela me falou "que pena mamãe. Que bom que o Dante nasceu em casa e que não jogaram a placenta dele, senão você teria ficado muito triste de novo". Tive certeza de que ela, apesar de ser tão pequena, compreendeu que o problema não havia sido o nascimento dela, e sim o tratamento que tivemos. 



Dante nasceu no dia 21 de Abril, dia de Tiradentes, contrariando sua mãe e nascendo no primeiro dia de touro (eu queria um ariano hahahaha), também no primeiro dia de lua cheia e em lua de Ogum. Nasceu com 3,530kg e 49cm, após uma cesariana e depois de 86h de bolsa rota, na minha casa, ao lado da cama em que foi feito, na presença da irmã e do pai. Foram 11h de trabalho de parto. Curei minhas feridas e consegui fechar um ciclo com esse parto. Renasci como mulher e como mãe, e encontrei a força que eu sabia que tinha dentro de mim. Nunca vou esquecer de minha amiga Simone me falando que não fui eu quem falhei no nascimento da Aurora, e sim o sistema que falhou comigo. Essa frase ficou marcada na minha memória e sou muito grata por você tê-la dito, minha amiga querida. 

Se meu obstetra tivesse na cidade provavelmente ele teria se agoniado com o tempo de bolsa rota e iria querer induzir meu parto. Se meu parto fosse no hospital, eu teria tido outra cesariana por conta dos protocolos hospitalares pra bolsa rota.

Apesar de doer muito, a dor de um trabalho de parto nem se compara a um pós-operatório de uma cesárea. Eu tive os dois e posso falar com a boca cheia que dói muito menos ter um bebê em casa do que num hospital com anestesia e etc. Após a cesárea eu me senti quebrada, inútil e arrebentada. Depois de parir eu me senti eu, inteira, sem pedaços e sem ter que juntar os caquinhos. Isso fez toda diferença pra eu passar um pós-parto tranquilo.



Agradeço ao meu marido e minha mãe, pelo apoio incondicional. À minha filha, por me ajudar, me amar e me ensinar a ser um ser humano melhor todos os dias. À minha equipe fantástica pelo esforço, por topar comigo esperar e quebrar todos os protocolos hospitalares. À Rebeca Charchar por me auxiliar nesse parto que durou cinco anos. E às minhas amigas por me ajudarem a ter uma gravidez tranquila e feliz. :)


sábado, 7 de maio de 2016

Pelos direitos dos meninos

Quando eu fiquei grávida pela primeira vez, torci muito pra ser um menino. Eu nem sabia o que era feminismo na época, mas sabia que não queria colocar mais uma mulher nesse mundo. A hora em que o médico disse "é uma menina", eu só consegui dizer "Porra Luciano, pra quê vc foi mandar o X?". Eu não sabia o porquê, mas não queria de jeito nenhum ter uma filha. Lembro de pensar "puta que pariu, mais uma sofredora nesse mundo"

Passei os nove meses da gravidez tentando achar uma saída pra conseguir criar uma mulher autônoma, que não fosse limitada pelo contexto social. Não queria que minha filha fosse uma vitima da sociedade. Queria destruir todas as estatísticas que gritam que meninas sofrem mais abusos, mais estupros, violência obstétrica e violência doméstica. Queria, literalmente, enfiar Aurora de volta na barriga. Até hoje eu e o pai dela fazemos um trabalho de tentar valoriza-la, de não aceitar limitações de gênero e tudo o mais. Não queria e nem quero que minha filha vire estatística. E é muito, mas muito desgastante. É um trabalho diário convencendo-a a nadar contra a corrente, a não aceitar quando os meninos não a deixam jogar futebol, a incentivar a ser esperta e inteligente, a pensar numa profissão ao invés de mofar esperando um príncipe encantado. É falar todo dia que ela não precisa ser bela, recatada e do lar, que ela pode ser o que quiser (inclusive, se quiser ser bela, recatada e do lar, tb pode, desde que seja por escolha e não imposição social). Sempre achei que ter menino fosse mais fácil, que eu não teria que me preocupar tanto se ela fosse um menino. Santa ingenuidade.

Daí que eu engravidei de novo. Dessa vez resolvemos não saber o sexo do bebê, porque pra nós não importava e seria uma emoção muito legal descobrir na hora do nascimento. Foram 9 meses rodando lugares e catando roupa unissex. Foram 9 meses ouvindo merda de gente na rua que era melhor ter um casal pra ficar mais bonitinho. E eu passei 9 meses falando que queria outra menina, por puro despeito mesmo e pra evitar falatório de gente tosca na minha orelha.

Mas a possibilidade de ser um menino me trouxe certas coisas a tona. Conversei muito com o Lu sobre infância, sobre padrões que a sociedade impõe nos guris desde cedo e comecei a ficar meio assustada. A realidade das meninas eu conheço, pq afinal de contas eu fui uma menina na sociedade brasileira não tem muito tempo, mas a dos meninos era um completo desconhecido pra mim. Não sabia nem limpar um pinto direito, que dirá saber dos dramas infantis dos muleques.

O bebê nasceu, e tcharam, é um menino. Eu não tinha noção do que é ser um homem numa sociedade patriarcal até o Dante nascer e eu tomar um banho de balde de merda na cabeça já nas primeiras horas de vida: "e o tamanho do saco dele? é grande?", algumas pessoas perguntavam. Depois, quando saímos na rua, alguns conhecidos vinham logo dizer "nossa, ele tem mt cara de hominho, vai ser disputado". Ou então "esse vai dar trabalho hein?". E o garoto só tem 17 dias. DEZESSETE DIAS DE VIDA. Estou, até agora, chocada. Quer dizer, ele JÁ tem a obrigação de ser um garanhão, macho viril, reprodutor e HETERO. Não pode tratar mulher igual gente, pq já tem a obrigação social de "dar trabalho" no melhor estilo "prendam suas cabras que meus bodes estão soltos". Não pode usar roupa colorida, tem que ser azul, pq senão a tia da padaria não vai saber que é um menino, afinal de contas, onde já se viu homi usar a roupa rosa que herdou da irmã? E se ele for gay? E se ele for hetero, e mesmo assim quiser usar rosa e ser um cara sensível, qual o problema?

Eu olho pro lado e vejo esse bebê, lindo, rosado e bochechudo que, por acaso, também tem um saco e um pênis, e não consigo pensar em nada mais do que "quero que ele seja feliz". Dane-se se ele vai "fazer sucesso com as mulheres", se vai jogar futebol, se vai beber com os amigos assistindo a libertadores no maior estilo clichê masculino, se vai chorar quando der vontade e brincar de casinha com bonecas se quiser. As escolhas são dele! Ele, nem nenhum menino, precisa ter a obrigação de ser viril e conquistador. É MUITA coisa pra uma criança tão pequena.

E, pra coroar com chave de ouro, conversando com amigas descobri que meninos também são tão abusados quanto meninas. Que a diferença é que, por conta dessa palhaçada de contexto social, os meninos não falam. Que os meninos são obrigados a acharem o abuso uma coisa boa, pois ter alguém mexendo no pênis dele deveria ser motivo de orgulho e virilidade, independente da vontade deles. E que, pro meus espanto, vou ter tanta ou mais preocupação com o meu filho, justamente porque a sociedade brutaliza os meninos na mesma proporção em que fragiliza e incapacita as mulheres.

Ao mesmo tempo em que me dei conta disso tudo, também percebi que, apesar de óbvio, o patriarcado também oprime os homens. Que ser obrigado a estar de pau duro o tempo todo também faz mal. Que não ter direito de chorar porque "é coisa de mulherzinha", que não poder pedir colo pra mãe, é tão escroto quanto dizer que uma menina não pode fazer determinada coisa porque ela é menina. E que mudar de perspectiva é importante pra não ficarmos engessados. Principalmente, que eu vim pra esse mundo pra pagar a minha língua e engolir todos os meus preconceitos em uma encarnação só, pq justamente quando eu achei que tava "salva", me vem mais um desafio.